segunda-feira, novembro 17, 2008

A vida a sério

Agastada pelo cansaço mental de mais um dia de trabalho que ainda não havia chegado ao fim e revia os seus afazeres enquanto caminhava para os correios para depositar a prova de que um prazo havia sido cumprido, encontrou um livro interessante.
Felizmente, alguém teve a ideia de vender livros nas estações de correios e outros objectos, sempre servem a utilidade, para as pessoas que cumprem uma das suas tarefas diárias, na qual se inclui a ida aos correios, de se distraírem um pouco e, assim, entrar noutro mundo - o do estímulo visual e intelectual, qual micro fnacs improvisadas.
Será, deveras, esse o espírito?
Enquanto descobria, entre os vários livros expostos, o mais apelativo aos seus sentidos naquele momento e depois de o começar a ler, assaltou-a de repente a dúvida: "Será que posso estar a ler o livro? Talvez, se continuar de pé, não cause dano...!" E continuou na sua leitura, alheia, entretanto, ao seu pensamento, uma vez que o interesse do livro superava a vergonha de alguém lhe poder vir dizer que os livros eram só para exposição.
E começava assim: "Tenho 29 anos. Estou à espera que a minha vida seja a sério, coisa que até agora ainda não aconteceu." Prólogo de um romance interessante, ou não, coisa que só podia ser objecto de opinião idónea se a leitura das duzentas e tal páginas pudesse ter sido concluída, o que, convenhamos, seria mau sinal se se demorassem horas até sermos atendidos num posto de correio - mal andaria o nosso país...
No entanto, farta da escrita técnica e da imaginação estilo "à vontade do freguês", a sua mente transportou-a para outras realidades, vividas a par do mundo trabalho.

Ela tem 28 anos. Todos os dias se olha ao espelho. No outro dia reparou que já tem rugas à volta dos olhos. Pensou imediatamente em duas coisas: a primeira que tinha de tratar de comprar um creme, na expectativa de que os tão anunciados fonte da juventude possam produzir, de facto, algum efeito. Ainda assim, à cautela, mais valia experimentar do que passar uma vida inteira a pensar como seria se tivesse sido diligente (ou outra coisa qualquer que lhe queiram chamar) e comprasse o creme. A segunda foi: "Tenho de deixar de fumar", apesar de lhe parecer um argumento secundário, este da beleza da pele, para deixar de fumar, logo lhe veio o pensamento de como seria um dia de irritação sem fumar um cigarro, o que a fez desistir automaticamente da ideia. "Agora não, quando engravidar!".

É uma rapariga (chamemos-lhe assim, para não ferir as suas susceptibilidades, ainda agora declaradas pela reacção às primeiras rugas) independente. Tem o seu trabalho, a sua casa, a sua vida social preenchida e não passa necessidades materiais. A organização do seu tempo é gerida por ela como bem lhe aprouver. Janta às horas que quer, ou substitui o jantar por flocos, ninguém lhe diz: "Devias...". Todavia, aquela frase daquele livro, despoletou um sentimento, quiçá escondido mas latente: "Quando é que tenho uma vida a sério? Não é a minha vida a sério?" Havia qualquer coisa nela que lhe dizia a vida não era só assim, não podia ser. Os dias cinzentos, sem cor, ou flats, como uma amiga lhes chama, não podiam ser sempre assim.
Pensou como esta visão muda quando estamos apaixonados. "Hoje em dia, há liberdade para termos os relacionamentos que quisermos, o sexo que quisermos e, no entanto, porque é que não somos felizes? Porque é que o entusiasmo inicial se reduz a um "podia ser pior" tão rápido quanto o sol se põe na linha do horizonte? Porque é que é tão difícil? Porque é que é tão difícil aguentar uma relação nos momentos maus?"
Ainda que não fosse uma mulher madura, no sentido físico da palavra, não deixava de pensar que a idade para ter um filho estava a aproximar-se. "É, parece que quando se chega aos 30 anos, o relógio biológico desperta mesmo..." E nisto, revia o seu passado não muito distante em que olhava para as crianças sem qualquer vontade de aproximação destas.

"Minha querida, estás doente e sem ninguém para cuidar de ti..." Palavras preocupadas de uma mãe de uma outra geração em que os filhos saíam de casa para casar. "Ora, quem haveria de ser: eu! Não te preocupes, porque tenho uma canja daquelas que é preciso só ferver com água e num instante me ponho boa outra vez..."
"Não gosto de te ver sozinha..." "Ora, lá diz o ditado que "Mais vale sozinha, que mal acompanhada!" "Pois é, pois é... tu é que sabes" Expressando a tristeza fatalista de quem pensa que não há-se ser avó, "pelo andar da carruagem".
Pekas palavras da mãe, percebeu que não poderá nunca compreender esta realidade da nova geração, porque não a experienciou. Não saberá ela o quão difícil é encontrar a pessoa certa para estar ao nosso lado? Não saberá ela que, apesar de serem dois mundos distintos, o de solteiro e de comprometido, ambos com vantagens, às vezes os dias são cinzentos e flats, sem cor por ausência de amor (no sentido de relação amorosa)?
E nisto se ficou, "Quando, mas quando será a minha vida a sério?"
E as pessoas na rua passavam, sem saber o que lhe ocupava o pensamento, enquanto voltava para a sua escrita técnica e um dia de trabalho ainda não acabado.